“Você precisava ter conhecido o Quércia. Olha, era um vigarista de mão cheia, um pilantra, mas de uma inteligência… Uma vez ele chamou a gente, chamou a imprensa também para acompanhar a duplicação da Dom Pedro. Era um trecho de uns 500 metros, mas ele falou assim pro repórter: ‘que beleza isso, hein? Veja só como vai mudar o fluxo aqui, beneficiar toda essa região, que maravilha’. E o repórter levou pro ar daquele jeito mesmo. Eram só 500 metros! Não ia mudar nada. Mas você imagina se alguém ia contestar… Isso deve fazer uns 30 anos. Acha que alguém conhecia a Dom Pedro? Brasileiro não conhece nem o Dom Pedro….”
Sempre que entro num táxi, tomo referências da praça. Analista, aqueles que exercem a profissão como um chamamento do seu daimon, é sujeito curioso e interessado. Anedotas de como estão as vendas em determinado restaurante ou a demanda por táxi não são exercícios científicos, claro, mas podem servir de catálise para uma posterior investigação estatística mais profunda. O conhecimento emana da prática para a teoria, que devolve formulações gerais para casos particulares. Às minhas perguntas para a visão daquele motorista que me levava a um almoço em Higienópolis sobre a cidade, obtive como resposta a história acima.
Como costumo pegar a Carvalho Pinto nos feriados, conheço razoavelmente bem a Dom Pedro. Já o Dom Pedro, de fato, merecia minha maior atenção – a não ser em sua versão reencarnada (a explicação detalhada da piada está no podcast Collor x Collor, que expõe a versão de nosso ex-presidente, em sua visão, a reencarnação do primeiro imperador brasileiro, enquanto seu irmão Pedro carregaria a mesma alma de Dom Miguel).
Curioso como nossa Constituição mais longeva é ainda aquela de 1824, tendo sido muito importante para garantir a unidade territorial e apropriar-se de valores liberais importantes, de influência Iluminista. Tem a parte das contradições também, claro, da dissolução da constituinte, do poder moderador e do voto censitário.
Ah, parece que Dom Pedro foi também o sujeito da independência. Quase me escapou. Está tão fora de moda que quase me esqueço. Não me refiro necessariamente à independência política, mas ao livre pensamento. Onde foram parar as pessoas capazes de pensar com a própria cabeça? Estamos espremidos entre os dois leviatãs de John Gray: a esquerda identitária de um lado, o nacionalista reacionário de outro.
Ficamos perdidos num tribalismo opressor, em que as crenças individuais inexistem (e digo as verdadeiramente individuais, não aquelas ditadas pelo seu grupo de estudo de Ayn Rand, de uma dúzia de herdeiros playboys, machos alpha com grande ímpeto de afirmar a própria masculinidade e/ou startupeiros com camisetas do Brasil e bandeiras ufanistas no hall do escritório).
Poucas coisas são mais deletérias ao investidor do que levar sua ideologia política à tomada de decisão envolvendo o próprio dinheiro. Curioso como os extremos, ao desvencilharem-se da razão e da ciência, acabam dando uma volta de 360 graus e acabam se encontrando.
A decisão do Copom na semana passada conseguiu feito raro, unindo lulistas e bolsonaristas em discurso semelhante. Gleisi Hoffmann se apressou em criticar “aquele cidadão”, que mantém os juros altos só com a sádica intenção de beneficiar os rentistas. Parte da direita extremista passou a apontar um projeto político pessoal de Roberto Campos Neto, cujas decisões pretéritas teriam, inclusive, contribuído para a derrota de Jair Bolsonaro nas últimas eleições.
Ao viés ideológico de alguns, somou-se o imediatismo de outros. Se o Copom tirou o plural “das próximas reuniões”, logo estaria propenso a interromper o ciclo de quedas da Selic. Será mesmo?
A questão certamente poderá ser mais bem respondida amanhã, com a ata da reunião. Por ora, as conclusões me parecem um pouco precipitadas, potencialmente confundindo ausência de evidência com evidência de ausência. O fato de o Copom não ter se comprometido com novo corte de 50 pontos-base em sua reunião subsequente não significa o compromisso com corte menor.
O Copom foi bastante cuidadoso em alterar seu discurso, afirmando explicitamente não ter identificado mudança no cenário em curso e enviando recado tácito semelhante, ao manter sua projeção de inflação para 2025 em 3,2% a partir do cenário de mercado.
Há duas inferências importantes aqui. A primeira é que, com a Selic projetada pelo Focus, já estamos muito próximos à meta de 3%. Além do platonismo típico dos economistas e de seus exercícios de estática comparativa, será mesmo que faz sentido um sacrifício grande em prol de 20 pontos-base na inflação, que, aliás, seria bastante baixa para o histórico brasileiro? Em adição, se, com a Selic indo a 8,50%, chegamos a 3,2% de inflação, talvez pudéssemos parar em 9,50% ou 9,25% ao ano. Em outras palavras, ainda haveria bom espaço para flexibilização monetária mesmo depois dos próximos 50 pontos de queda já contratados para a próxima reunião.
Tudo isso para dizer que talvez haja um pessimismo exagerado do mercado neste momento. A ata de amanhã pode ser a primeira catálise para alterar esse quadro, sobretudo se houver ajuda do IPCA-15.
Quando o debate macro e sistêmico fica acalorado, ampliamos a dispersão dos resultados possíveis (mais risco e mais volatilidade). Ele perde profundidade e nuances. Tem pouco a oferecer. Então, voltar-se ao micro pode render insights mais relevantes.
Depois de toda essa trapizonga (existe outra palavra possível?) de Vivara, fico pensando naqueles investidores quality que foram atraídos para o case sob a narrativa de que tínhamos ali um nome capaz de atravessar as dificuldades do setor com uma dinâmica idiossincrática boa e com crescimento contratado. Depois de todo ocorrido, não há mais como chamar a história de quality – embora a decisão do fundador de desistir do cargo de CEO pareça adequada, o fato aconteceu e deixa uma mácula.
Então, o investidor recorre a outros nomes no varejo com as características históricas associadas à qualidade. Renner tem melhorado, mas ainda não tem múltiplo interessante para este ano. Arezzo também é ótima, com a ressalva de que enfrenta uma digestão difícil pela frente. Resta um nome limpo, com operacionais claramente melhorando, zerando a alavancagem e ainda bem barato: Grupo SBF. Se esse cara fizer algo próximo a R$ 400 milhões de lucro neste ano (não é tão difícil, porque vende R$ 8 bi e pode ter uma margem líquida de 5%), estamos falando de um P/L abaixo de 9x.
Nesses nomes de mid e small caps, também me chamou atenção na semana passada o comportamento de Ferbasa. Não somente a ação negocia a um valuation descolado de seus fundamentos, bastante cara perto de 15x EV/Ebitda, principalmente quando ponderamos pela sobreoferta chinesa, mas também por um volume de negociação no after market desproporcional ao razoável. Há algo estranho no reino da Dinamarca.
E para encerrar, depois de ter passado boa parte do final de semana vendo vídeos e relatórios sobre AI, sai convencido de que um bom ETF de tecnologia pode resolver boa parte dos problemas em 2024, até mesmo para fugirmos do risco de essa história continuar drenando liquidez global até o final do ano.
No filme Sindicato de Ladrões, há uma fala de que gosto muito: “É o que torna as pessoas más: falta de atenção.” O Brasil sofre de déficit de atenção.
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